17 fevereiro 2011

A COSTUREIRA

Extraído do livro Mulheres de aço e de flores - Pe Fabio de Melo

Ando tão apertada de costura que se o dia tivesse vinte e cinco horas ainda sobrariam três ou quatro botões para pregar. Essa vida anda depressa demais. 
Quando menos imagino, o dia já se foi, esse desaforado!
Vivo para ajeitar as mulheres. Prepará-las para ocasiões. 
São jantares, casamentos, formaturas. Vivo para ajudar a esconder os defeitos. 
A gordura localizada, a estria, a celulite. Em situações mais raras, saliento as virtudes.
Adelaide Moura não costura com nenhuma outra pessoa porque só eu sei esconder aquele culote. Branca Rodarte não dá um passo para fora de casa se a roupa que estiver 
vestindo não tiver saído da minha máquina. 
É quase uma ciência a forma com que disfarço a sua falta de seios. Um enchimento aqui, outro enchimento ali. O tecido socorrendo a ausência de carnes. 
O que falta em umas sobra em outras. Lídia Boaventura costura comigo por uma razão contrária à de Branca, nela, a natureza resolveu sobrar generosa. 
Cores e tecidos a serviço da ação clandestina. Mundo esquisito, meu Deus!
Helena Sobreira não sabe o que fazer com tanta carne. A única cor que lhe cai um pouquinho melhor é o preto. Parece uma viúva eterna.
Eu me exercito no ofício de costurar tecidos desde os dezesseis anos de idade. 
Herdei o dom de minha mãe, que por sua vez herdou o dom de minha avó. Uma ancestralidade! 
Fazer roupas é um jeito de ver os bastidores dos acontecimentos. 
Enquanto todo mundo vê a roupa por fora eu vejo é por dentro, nos seus avessos. 
O que vejo do tecido é sua sustentação primeira, sua trama.
 Um tecido só é bonito de verdade à medida que possui um avesso que o sustenta.
 A beleza externa só tem sentido porque há um alicerce no contraponto. Interessante, mas as pessoas são semelhantes aos tecidos. Se não há uma trama de sustentação não há beleza 
que possa sobreviver aos desmandes do mundo.
Rosélia Adamastor nunca foi feliz. Talvez tenha sido a mulher mais bela que a nossa pequena cidade tenha conhecido. Mas a sua beleza não repercutiu na sua alma. Não foi o suficiente para lhe fazer feliz. Faltou um avesso de tramas resistentes. É estranho. 
Já Eliodora Fernandes sempre foi de uma feiúra de dar dó na gente. Mas o interessante é que nunca faltou um sorriso naquela criatura. O avesso foi bem feito.
Mulheres por dentro e por fora. Mistérios que me despertam coragem para continuar costurando. 
Minha máquina é minha realidade. É dela que parto para os meus sonhos. 
O que materialmente corto, ajunto e costuro, de alguma forma repercute dentro de mim. Eu toco constantemente os bastidores da vida. E é a partir desses avessos que construo pontes que me levam para outros mundos.
Eu costuro a realidade com linhas de sonhos. Imagino. 
E no ato de imaginar sou retirada para dançar, repito a sobremesa, comento a elegância dos adornos; troco olhares com o garçom. Rodopio enquanto danço pelo salão; recebo elogios pela escolha do penteado, a seda do vestido. 
Tudo isso sem sair de minha máquina. As linhas que entrelaçam os tecidos suturam o meu coração a realidades inexistentes.
E por isso sou especialista em ver além das aparências. 
Sei do que os tecidos são capazes e as viagens que proporcionam. Se não tivesse essa habilidade não me restaria muita coisa. A vida na castidade, o corpo preservado, as pernas sem destinos, os cabelos sem fitas, o pescoço sem colares. vida na mais perfeita e absoluta normalidade. Nem um risco no calendário, nenhum dia convidado a sair do esquecimento; nenhum convite pregado na geladeira, nada que anuncie um sábado com aspecto de primavera: horário marcado no salão, atenção especial para um corte de vestido, retoque de tinta no sapato de ocasião.
Eu viajo é nas cores dos tecidos. Quilômetros e quilômetros de linhas me levam pelo mundo afora. 
O meu porto é a minha máquina. Nela eu sacramento partidas que não terminam nunca.
Aprendi muito cedo que o sonho é mais que a realidade. No sonho, o cruel se desfaz com a mudança de foco.
É simples. É só deixar de pensar. Se a paixão não convém é só trocar a cara. Fácil de resolver. A imaginação permite retoque, mudanças constantes. De Belo Horizonte a Paris eu levo um segundo. Não pago passagem, nem tenho problema com excesso de bagagem. Eu vou leve. Esqueço as roupas. Volto pra buscar. Troco a cena. Mudo o clima. Faço vir a chuva para dormir logo. Solicito o sol para o meu mergulho e imagino a neve para amenizar o calor. Acendo lareiras nas noites frias; encontro a promissória perdida; ganho na loteria, e divido o prêmio com os pobres.
Na angústia, adio a decisão. Na agonia, antecipo o fim. Na alegria, eu prolongo o início. 
O tempo não tem poder sobre minha velha máquina de costura. 
Ela o desafia constantemente. Desafio que demonstra intimidade, parceria. 
Minhas pernas não andam, mas chegam. Chegam aos lugares que aos sonhos pertencem.
O homem amado, o amor miúdo de toda hora, a espera no portão, o medo de que ele se atrase e que desista por vergonha, que não mande recado. Medo de que a espera fique superior ao tempo reservado para as esperas que se confundem com a alegria.
A casa sem número ainda em construção. A planta discutida; o desejo partilhado de uma varanda que nos proporcione uma visão do outro lado da rua. O lugar não habitado, clandestino, iluminado por um poste de madeira. Os insetos voando em movimentos circulares, tais como os amantes ao redor de suas esperanças. Coisas pequenas que nos fizessem reviver os encantos dos tempos já idos, vividos, ancorados nos porões da memória, dos dias em que a vida era acontecimento certo, rotina garantida, panos estendidos à espera de corte.
Eu não sei viver de outro modo. Quando quis a realidade, ocorreu-me a solidão e o despreparo. Vi o tecido da vida se desprender de minhas mãos, e com ele a minha habilidade. E naquele dia, o vestido de Eliane Vieira não ficou pronto a tempo da ocasião para a qual ela o havia solicitado.
O choro incontido o dia inteiro, a dor na alma, o inchaço nos olhos, a pouca visão. O fogão de quatro bocas.
Desde então, minha mãe iniciou-me no ofício de costurar tecidos. Ensinou-me os segredos das texturas e das cores. Foi com redobrada atenção que me ensinou a puxar da máquina, juntamente com as linhas dos carretéis, as linhas dos sonhos. Ela dizia: – Tem de enxergar o que a cliente quer! Ajude a transformar o sonho em realidade! –, insistia.
E foi assim que o sonho se tornou a minha realidade.
Quando minha mãe morreu, eu já acumulava 26 anos. 
Ao chegar em casa, depois do sepultamento, entrei em seu quartinho de costura. Ainda havia carretel de linha colocado na máquina. Um pedaço de tecido azul marinho estava cortado, pronto para a costura. Um outro pedaço de tecido branco estava riscado como detalhe para a gola, pronto para o corte. Um paletó de mulher, eu percebi. O paletó que estava fazendo para ela mesma. Os aviamentos; pequenas amostras de sianinhas estavam colocadas ao lado do tecido. Intuí que a escolha ainda não era definitiva. Dois modelos de botões também estavam reservados.
Já era fi m de tarde. A dama-da-noite começava a demonstrar que existia. Sentei-me na máquina e pus-me a fazer aquele paletó de mulher. Uma costura a quatro mãos. Mãos vivas, mãos mortas. O que ela havia começado eu resolvi terminar. Cumplicidade só possível aos que amam sem os limites do tempo. Um paletó que seria usado em ocasiões simples. Missa das 6 da manhã. Mesmo no verão o vento era frio naquela hora. Uma visita ao Santíssimo Sacramento nas noites de quinta-feira, ou até mesmo as pequenas comemorações do grupo da terceira idade.
Enquanto costurava, pude experimentar a minha dor com todas as suas conseqüências. – Já não há razões para este paletó! –, pensei. Já não há mais o corpo que iria vesti-lo. 
Os dois pequenos bolsos não aquecerão as mãos calejadas de tesoura e agulhas. As mãos desaprenderam de ser vivas. 
Já não movimentam o risco, o molde, o corte e a fechadura da porta.
Algumas horas depois escolhi os botões. Decidi com segurança pelo que tinha detalhes de flores delicadas. 
Senti me orgulhosa por conhecer os gostos de minha costureira favorita. Quando dei por mim a noite já estava avançada em horas. O tempo em que durou o meu ofício partilhado não pertenceu à natureza do tempo que passa. Pude notar em mim algo superior. A costura daquele tecido extrapolou a materialidade. Ela foi além. Atingiu também a minha alma. Costurou-me de forma definitiva às mãos que me fizeram mulher, ao ventre que me teceu para o mundo, o avesso de minha sustentação. Cumpri na minha carne o milagre bonito da continuidade, e por que não dizer, da ressurreição gloriosa.
Ao terminar o que ela havia começado, eu colocava os meus pés numa missão evangélica, semelhante à que os discípulos de Jesus precisaram cumprir para que o mestre não morresse na morte. Depois da pedra posta os passos precisam reencontrar a direção da vida. E foi o que eu fiz. O ritual de sepultamento terminou ali, na ressurreição que a máquina de costura me proporcionou.
Há coisas que a morte não sepulta porque pertencem à vida eternizada.  Minha mãe está em mim. 
Terminado o paletó, abracei-o e dancei com ele uma valsa de despedida e de saudade!




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